Na efervescência que costuma caracterizar o início das legislaturas, o tema da reforma política ocupa um espaço privilegiado em discursos e entrevistas de parlamentares. No último dia 2, não foi diferente, embora desta vez os presidentes do Senado, José Sarney, e da Câmara dos Deputados, Marco Maia, tenham tratado a reforma como prioridade, e não apenas como necessidade.
A essas vozes, somou-se a da presidente da República, Dilma Rousseff, eleita com 55 milhões de votos por uma coligação partidária que tem ampla maioria no Congresso. Também presente à solenidade, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cezar Peluso, não faz restrições à ideia. Até porque, boa parte dos problemas causados por uma legislação considerada anacrônica acabam sobre as mesas dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e, por fim, do Supremo.
A força de um Congresso renovado e o apoio dos chefes dos três poderes criam ambiente favorável ao desejo dos cidadãos brasileiros pela reforma política - pelo menos para o debate, que começa de fato nesta terça-feira (22), quando se instala a Comissão da Reforma Política do Senado, integrada por 12 membros.
Desde 1988, quando a Assembleia Nacional Constituinte consolidou a recém implantada democracia brasileira, o país avançou em vários campos, como no social e no econômico, mas regrediu politicamente. Essa não é uma crítica apenas do presidente do Senado, José Sarney. O sistema eleitoral vigente é condenado por todos, principalmente pelos eleitores, que fazem suas escolhas pessoais, mas de uma maneira geral se surpreendem com o resultado final das votações. Algumas peculiaridades do sistema brasileiro acabaram tornando as eleições de outubro as mais afetadas por decisões judiciais em toda a nossa história.
Ao meio-dia desta terça, no Plenário do Senado, Sarney dá início às atividades da comissão por ele incumbida de estudar e, num prazo de 45 dias, apresentar ao Congresso uma proposta de reforma política. Por ora, a reforma tem vários desenhos, dependendo do parlamentar e do partido, mas a missão desses doze senadores, e dos demais, é a de propor e aprovar um sistema capaz de conferir maior legitimidade aos mandatos.
Nelson Oliveira e Teresa Cardoso / Agência Senado
Alterar a forma como são eleitos os deputados federais, assim como vereadores, deputados estaduais e distritais, está entre as iniciativas a serem discutidas pela Comissão de Reforma Política recém-criada pelo Senado. Há muitas críticas ao sistema proporcional de lista aberta, atualmente utilizado nas eleições para esses cargos, mas não há consenso sobre o modelo que poderia substituí-lo.
O PSDB defende o voto distrital misto, enquanto o PT da presidente Dilma Rousseff se mantém a favor da lista fechada. Já o presidente da Comissão de Reforma Política, Francisco Dornelles (PP-RJ), propõe o chamado "distritão", ou seja, o voto majoritário para estados e municípios.
Uma das críticas ao sistema atual é que o eleitor vota em um candidato, mas, ao fazê-lo, pode contribuir para eleger outros que pertençam ao mesmo partido (ou a uma eventual coligação). Isso ocorre porque, no sistema proporcional de lista aberta, o voto não é contabilizado apenas para o candidato, mas também para seu partido. E é o número total dos votos válidos de cada partido que define a quantidade de vagas a que a legenda terá direito.
Por causa dessa lógica, um candidato "puxador de votos" (capaz de conquistar, sozinho, uma grande fatia do eleitorado) ajuda a eleger colegas de partido ou coligação, até quando a votação deles é menor que a de candidatos de outras legendas.
O caso do falecido deputado federal Enéas Carneiro, do antigo Prona, é lembrado com frequência. Em 2002, ele se elegeu para a Câmara após obter cerca de 1,5 milhão de votos no estado de São Paulo. Enéas tornou-se um "puxador de votos" para o seu partido, que, graças à sua votação, levou outros cinco candidatos ao Congresso Nacional - um deles com menos de 300 votos.
- Por causa dessas distorções, há legendas que escolhem candidatos sem preparo para a vida parlamentar, mas que têm grande apelo eleitoral e podem atuar como puxadores de votos para o partido ou a coligação - diz Francisco Dornelles.
Ele argumenta que, dessa forma, os brasileiros acabam elegendo candidatos em quem nem pretendiam votar ou que nem conhecem. O senador acrescenta ainda que "tais candidatos muitas vezes nem têm afinidade ideológica ou programática com o puxador de votos".
Voto distrital
Para substituir o sistema vigente, há alternativas como a defendida pelo PSDB, que é favorável ao voto distrital misto, modelo que mescla características dos sistemas proporcional e majoritário. Apesar desse posicionamento, o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) diz que "o ideal seria adotar o voto distrital puro", no qual os estados são divididos em distritos e cada distrito escolhe, de forma majoritária, apenas um representante.
- No voto distrital puro o eleito está mais próximo do eleitor. Fica mais fácil para o cidadão fazer cobranças de seu representante - argumenta Aloysio Nunes.
Francisco Dornelles também considera o voto distrital puro "a solução ideal", mas avalia que a divisão de estados em diversos distritos eleitorais seria uma coisa "muito complexa e difícil de operacionalizar neste momento". Por isso, ele sugere "como primeiro passo" a conversão de estados, no caso dos deputados, e municípios, no caso dos vereadores, em grandes distritos (daí o apelido "distritão"), onde seriam eleitos apenas os mais votados.
O presidente da Comissão de Reforma Política diz ainda que, com o fim do voto proporcional em lista aberta, "perdem sentido as coligações para eleger deputados e vereadores". As coligações muitas vezes beneficiam as legendas que, sozinhas, não conseguem votos suficientes para atingir o quociente eleitoral.
Tanto o presidente do Senado, José Sarney, como o vice-presidente da República, Michel Temer, ambos do PMDB, já demonstraram simpatia pela eleição majoritária para deputados e vereadores. A mudança defendida por Dornelles está prevista em uma proposta de emenda à Constituição de sua autoria: a PEC 54/07.
Lista fechada
A proposta do "distritão", porém, é criticada pelo PT, que defende a manutenção do sistema proporcional - desde que a lista aberta seja substituída pela lista fechada. Segundo o líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE):
- O distritão significa a abolição definitiva dos partidos políticos, pois leva a uma personalização ainda maior das campanhas [já que o voto se destina unicamente ao candidato] e torna as eleições ainda mais caras, privilegiando os candidatos mais ricos -argumenta.
Nessa linha de raciocínio, a senadora Gleisi Hoffman (PT-PR) argumenta que "os partidos são fundamentais porque trazem às campanhas eleitorais o debate de ideias e de programas, debate que seria eliminado se o distritão fosse implantado".
No sistema de lista fechada mais difundido, o eleitor vota no partido, que já tem um grupo de candidatos escolhidos internamente. Ao defender a lista fechada, o PT afirma que esse sistema induz ao fortalecimento de partidos e, consequentemente, à consolidação da democracia.
O PT defende a implementação da lista fechada junto com o financiamento público de campanha, argumentando que isso evitaria, por exemplo, o encarecimento das campanhas. O senador Wellington Dias (PT-PI) assinala que, assim, "qualquer brasileiro, tendo dinheiro ou não, poderá participar do processo eleitoral e chegar ao Congresso sem estar comprometido com o financiador A ou B".
- Defendemos um sistema no qual haja a preponderância de partidos ideológicos e programáticos - reiterou Humberto Costa.
Por outro lado, até dentro PT, não há consenso em relação ao modelo exato de lista fechada a ser implantado. Wellington Dias, por exemplo, defende uma lista na qual o eleitor possa escolher, entre os candidatos definidos pelo partido, aquele que ele prefere (ou seja, seria possível "reordenar" a lista).
Gleisi Hoffman admite simpatizar, "ao menos inicialmente, como ideia a ser discutida", com o voto distrital misto. Além disso, ela propõe que o Brasil se baseie na experiência de países como a Argentina, onde se implantou um sistema de lista fechada que promoveu o aumento do número de mulheres entre os parlamentares.
Os críticos da lista fechada afirmam que esse modelo enfraquece o vínculo entre os candidatos e os eleitores e reforça o poder das cúpulas das legendas. Francisco Dornelles, por exemplo, diz que "tal sistema levaria, hoje, à ditadura das cúpulas partidárias". Já o líder do PSDB no Senado, Alvaro Dias (PSDB), observa que "não existem ainda partidos consolidados no Brasil, sendo que muitos são artificiais e vários não passam de siglas para mero registro de candidaturas".
- Ainda há muito a superar para, quem sabe, um dia discutirmos a possibilidade de implantar a lista fechada - diz
Ricardo Koiti Koshimizu / Agência Senado